Antes do desenvolvimento da teoria da Desconsideração da Pessoa Jurídica, os abusos cometidos por meio de uma sociedade para acobertar a responsabilidade de seus sócios eram consideravelmente mais frequentes. O instituto, hoje já velho conhecido dos operadores do Direito, — previsto no art. 28 do Código de Defesa do Consumidor, no art. 50 do Código Civil de 2002, e, posteriormente, tratando especificamente do Poder Público, no art. 14 da Lei 12.846/2013 — veio para garantir que se possa desconsiderar a pessoa jurídica, recaindo as consequências dos atos da sociedade sobre os seus administradores e sócios, que responderão com seus patrimônios particulares, nos seguintes casos: desvio de finalidade; confusão patrimonial; abuso de direito; excesso de poder; infração da lei; fato ou ato ilícito; e violação dos estatutos ou contrato social.
A partir de um entendimento jurisprudencial ainda incipiente — cuja principal decisão foi a proferida no Recurso Ordinário em Mandado de Segurança de nº 15166/BA, da lavra do Ministro do STJ Castro Meira —, pouco desenvolvido pela doutrina (sendo aí indispensável a leitura do artigo publicado na Revista do Tribunal de Contas da União de setembro a dezembro de 2010, nas páginas 47-62, assinado por Jessé Torres Pereira Júnior e Marinês Restelatto Dotti), as nossas cortes têm, acertadamente, aplicado o instituto em casos que lidam com as sanções previstas na Lei de Licitações (Lei 8.666).
Como é sabido, a Lei de Licitações, no intento de resguardar o interesse de todos os administrados, prevê que o particular contratado pelo Poder Público, no caso de inexecução total ou parcial da avença, pode ser apenado com a sanção de impedimento temporário de contratar e licitar com a Administração, ou ainda, com a sanção de declaração de iniquidade, pela qual fica a sociedade empresarial impedida de estabelecer negócio jurídico com qualquer pessoa ou órgão de Direito Público, até que as autoridades competentes entendam que a origem da tal iniquidade foi sanada.
Agindo de má-fé, alguns particulares tentam esquivar-se dessas sanções por meio da criação de nova pessoa jurídica. Dá-se, então, uma nova aparência ao infrator, para que sua condição de apenado não venha à tona, possibilitando-lhe voltar, fraudulentamente, a participar de licitações e a celebrar contratos com o Poder Público.
É nesse contexto que entra o instituto da Desconsideração da Personalidade Jurídica, então balizado pelo princípio da moralidade administrativa e pelo princípio da indisponibilidade do interesse público. Transpondo a teoria do Direito Privado para o Direito Administrativo, a sanção aplicada à sociedade que falhou em honrar suas obrigações com o Poder Público é estendida até a sociedade criada com o fim de esconder tal histórico negativo, garantindo que aquele que antes falhou com a coisa pública não volte a prejudicar o Erário e os administrados, apresentando-se com nova roupagem.
Nesse sentido, a título de exemplo, podemos destacar decisão liminar recentemente proferida pelo juiz da 12º Vara Federal da Seção Judiciária de Minas Gerais, na qual o magistrado suspendeu o trâmite de um procedimento licitatório em razão de a licitante colocada em primeiro lugar apresentar mesmos sócios, objetivo social e endereço de sociedade proibida de negociar com o Poder Público.
Ficam, então, dois recados para os empresários que trabalham diretamente com o Poder Público: que o licitante probo deve estudar cuidadosamente o passado de seus adversários (informações estratégicas podem ser obtidas aí); e que o licitante faltoso não deve contar com o fato de que simplesmente criar outra pessoa jurídica baste para se esquivar de suas penas.